sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O que é fabuloso para você?

Há poucos dias, encontrei em duas redes sociais na Internet uma referência a uma entrevista sobre a nossa profissão, concedida por uma colega tradutora a uma rádio dos Estados Unidos. A pessoa que fazia a referência, também do nosso meio, havia usado dois adjetivos em inglês: fabulous e outstanding. Fiquei imaginando do que poderia tratar essa entrevista para merecer esses elogios. Bom, fui logo
ouvi-la. Confesso que não fiquei tão impressionado quanto a colega.
A entrevista era curta, tinha um trocadilho bem interessante (fowl e foul), chamava a atenção para alguns aspectos pitorescos do nosso métier, mas classificá-la como excelente e fabulosa era de certa forma um exagero.

Naquele mesmo dia, reparei que a colega que havia elogiado a entrevista e uma outra colega, ambas residentes nos EUA, haviam comentado sobre o último Congresso da Associação Americana de Tradutores, realizado na semana passada, em Denver. Ambos opinaram que o congresso havia sido “fabulous” (de novo?!). Concordo que esses congressos são sempre muito proveitosos. Você tem a chance de conhecer novos clientes, fazer novas amizades, assistir a uma ou outra palestra interessante e sentar com um colega, com quem só tem contato por email, para almoçar ou tomar um vinho, mas a coisa não vai muito além disso. Eu não chamaria de fabuloso nem o encontro da ABRAPT na UFMG, em 2001, ocasião que conheci a Érica, minha mulher e mãe dos meus dois filhos.

Isso tudo me fez lembrar de algo que eu havia reparado durante o período em que morei nos Estados Unidos. Os americanos tinham lá certa queda por pecar pelo exagero ao usar os adjetivos. Alguém pode argumentar que gente deslumbrada existe em tudo que é canto, mas a frequência com que eu via esse deslumbre era maior lá. Comecei a perceber que, o que aos meus olhos parecia um exagero era também uma marca do discurso deles. Uma vez, por exemplo, na escola da Clarissa, houve uma apresentação em que as crianças da primeira e segunda série cantaram duas canções tradicionais, acompanhadas pela professora, que tocava piano. Ao fim da apresentação, um dos pais, conhecido nosso, exclamou: “that was amazing”. Amazing?! Tudo bem, eram as nossas filhas lá no palco, haviam cantado direitinho, bonitinho, mas achar aquilo espantoso era demais. Eu provavelmente soltaria um “that was great”, que ficaria de muito bom tamanho. Mas isso sou eu, falante nativo de português.

O leitor deve estar se perguntando por que o chato aqui fica prestando atenção no que os outros falam e pegando no pé das pessoas. Não é (só) chatice. Digamos que é também um exercício linguístico. Quando me deparo com uma frase, uma expressão, uma palavra, me pergunto o que eu faria se tivesse de traduzi-la. Para mim, traduzir é, acima de tudo, dizer na língua de chegada o que um falante dessa língua diria caso se encontrasse na mesma situação em que se encontra o falante da língua de partida, procurando causar o mínimo de estranhamento possível. Mas aí, alguns poderiam argumentar, eu deixaria de trazer traços da cultura alheia para a cultura da língua de chegada. Alguma coisa se perde, é inevitável. Que caminho tomar? Respeitar a marca do discurso e manter o exagero, correndo o risco de causar espécie ao leitor, que poderia até achar que o tradutor errou na mão, ou simplesmente modular o texto e optar por uma solução mais inócua. Nos dois casos, das tradutoras e do pai, eu provavelmente manteria o exagero, o deslumbre, mas eis um caso em que a modulação é obrigatória.

No ano passado, eu estava assistindo a uma aula de duas professoras sobre interpretação (community interpreting, para ser mais preciso, coisa comum nos EUA, mas praticamente inexistente aqui no Brasil). Em dado momento, uma delas fez um comentário. Em seguida, a outra disse o seguinte: “I’m so glad you made that comment”. Gente, o que terá dito a primeira que proporcionou tanto prazer, tanta alegria, à colega? Não me lembro mais do comentário, mas não me esqueço de que o semblante da segunda professora não mudou absolutamente nada. Não houve essa alegria que as palavras dela poderiam levar um tradutor incauto a imaginar. Mesmo sem saber desse detalhe, um bom tradutor teria modulado a frase e escrito algo como, “que bom que você fez esse comentário”.

Para encerrar, acho que vale a pena prestarmos atenção ao nosso discurso e medirmos nossas palavras. Quando mal usadas ou usadas em excesso, as palavras perdem a sua força. Para eu me referir a algo como fabuloso, ele tem que realmente ser fabuloso. Para fazer um trocadilho, caso pudéssemos voltar no tempo, ver um show dos Beatles, The Fab Four, seria algo fabuloso. Ou então o que li hoje no Estadão, no caderno Cidades. Em São Paulo, existe um grupo de balé formado majoritariamente por meninas cegas. A Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini é o único grupo de balé clássico profissional de deficientes visuais no mundo. Isso, sim, é fabuloso. E para quem quiser ver as meninas em ação, ao vivo, elas se apresentam hoje à noite, às 20h30, no Teatro Ítalo-brasileiro, na Avenida João Dias, 2046.

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